The Lurker: Assim caminha a humanidade.
Eram 18h45. Faltavam quinze minutos para ele terminar a jornada de 12 horas no aeroporto . Antes de sair, mais uma verificada nos banheiros, sua missão diária. Precisava ver se tudo estava em ordem. Na verdade, a maior preocupação dele, naquele dia, era arrumar dinheiro para pagar a conta atrasada de luz. Nunca R$ 28 lhe custaram tanto. Nunca alguma coisa lhe tirou tanto o sono. Nunca nada o atormentara de tal forma.
Francisco Basílio Cavalcante — de 55 anos, cearense de Sobral, 1,62m, auxiliar de serviços gerais da empresa Masp, terceira série primária, católico praticante, casado, cinco filhos, quatro netos, morador do Céu Azul (GO), 26 anos no mesmo emprego sem ter faltado até hoje a um dia de trabalho, salário bruto de R$ 370 — é homem de honrar compromissos.
Nunca havia deixado uma só dívida acumular. Tanto é que, há três meses, comprou um sofá nas Casas Bahia e parcelou a compra em 15 longas prestações de R$ 77. Nunca atrasou um pagamento. Só a conta de luz o transtornava.
Na última inspeção pelos banheiros do aeroporto, no plantão da quarta-feira, Francisco se deparou em uma das cabines com uma bolsa de couro, em cima da papeleira. Achou aquilo estranho. Quem teria deixado lá? Assustado, resolveu abri-la. E tomou o maior susto de sua vida. Dentro da bolsa, enrolado num pacote, além de passaportes e documentos pessoais, havia uma quantia em dinheiro que seus olhos jamais viram. Nem tanto nem naquela moeda.
O faxineiro estava diante de US$ 10 mil. Ou, se preferir, R$ 30 mil. Dinheiro que, se fosse juntar do salário, sem gastar um só centavo, levaria sete anos. O cearense tremeu. Suou. Ficou pálido. Uma vida inteira passou diante dele dentro daquele banheiro.
O que fazer? Ficar com a dinheirama toda ou devolver? Se ficasse, ninguém jamais saberia. Não há câmaras dentro dos banheiros. Seria perfeito. Poderia sair dali com a vida modificada. Mas a dúvida, mesmo com a maldita conta de luz atrasada, não interferiu na sua decisão.
Francisco chamou o chefe imediato, que atende pelo nome de Valdomiro. Não, não é o Waldomiro Diniz, aquele que estremeceu o Planalto. O chefe de Francisco se chama Valdomiro Magalhães dos Santos.
De quem seria aquela bolsa? Foi um corre-corre no aeroporto. De posse do passaporte do passageiro, avisaram pelo alto-falante. Nada. O supervisor Arenor Amorim, da empresa Omni, que cuida da segurança, encarregou-se pessoalmente de achar o dono da bolsa. Varreu o lugar.
E achou. Os US$ 10 mil pertenciam ao turista suíço René Dam, que viajava em companhia da mulher. Em Brasília, faria apenas uma conexão. O casal seguia para Manaus. De tão atordoado pela perda da bolsa, o turista não ouviu que era chamado pelo sistema de som.
Orientado pelo supervisor que o encontrou, o suíço conferiu tudo. Contou as notas de US$ 100. Haja nota! E lá estavam, intactos, os US$ 10 mil, junto com os documentos. O dinheiro, devidamente declarado ao chegar ao Brasil, voltou ao dono.
Prestações em dia
O turno de 12 horas de Francisco acabara. Era hora de mudar de roupa, tirar o macacão vermelho, guardar o crachá e voltar para casa, no Céu Azul. O turista quis conhecer o homem que havia achado seus dólares. Quis lhe oferecer uma recompensa. O faxineiro não estava mais no aeroporto.
Enquanto o suíço o procurava, Francisco se dirigia à parada. No sacolejo do ônibus, além do cansaço físico, o atraso na conta de luz ainda o inquietava. Ainda bem que as prestações do sofá das Casas Bahia estavam em dia.
No início da tarde de ontem, de folga , Francisco recebeu a reportagem do Correio em sua casa. De uma humildade comovente, ele arrumava um vazamento de um cano. De chinelo e camisa branca manchada de graxa, ele explicou por que devolveu a bolsa e os US$ 10 mil do turista suíço: ‘‘Tem que ser assim, moço. O que não é nosso precisa ser devolvido’’.
Na casa de três quartos e cerâmica brilhosa, comprada com o sacrifício de 26 anos de trabalho como faxineiro do aeroporto, a vida dele e da mulher, a também cearense Raimunda Nonata Cavalcante, de 53 anos, é a prova da honestidade. E da delicadeza de uma família pobre. Ofereceu café quentinho e água de pote no copo de alumínio.
‘‘A gente já passou muita precisão, mas é honesto’’, conta ela. E comenta sobre o dinheiro que o marido achou no banheiro do aeroporto: ‘‘Se o Francisco chegasse aqui com esse dinheiro, a gente ia devolver. Um dinheiro que não é da gente não pode ser do bem. Não pode trazer felicidade’’.
Saudades do Ceará
Há sete anos, os cinco filhos de Francisco se reuniram. Decidiram que o pai estava andando a pé demais. Cansava-se demais. Cotizaram-se e compraram uma bicicleta Caloi antiga, de segunda mão. ‘‘Foi o melhor presente da minha vida’’, confessa ele.
É com essa velha bicicleta — seu único meio de locomoção, além do ônibus — que Francisco anda pela esburacada Céu Azul. Na garupa, carrega a mulher Raimunda Nonata, com quem está casado há 33 anos. ‘‘A gente passeia e vai à feira’’, revela Raimunda.
Nos planos mais imediatos de Francisco, além de pagar a conta de luz atrasada, está a aposentadoria. ‘‘Daqui a cinco anos eu aposento’’, contabiliza. E revela um sonho: ‘‘Tenho muita saudade do Ceará. Queria ir ao Juazeiro agradecer ao Padim Ciço tudo que consegui aqui’’.
Trabalhando há 26 anos no aeroporto, o faxineiro só andou de avião uma vez, em 1989. Mesmo assim porque ganhou a passagem da Aeronáutica. Foi até Petrolina, em Pernambuco. ‘‘Me senti a pessoa mais importante do mundo. Achei lindo ver as nuvens’’, emociona-se.
Sentado na velha bicicleta — colocou até roupa nova para a fotografia — Francisco responde à pergunta que todos gostariam de fazer:
— O senhor sente orgulho por ter devolvido o dinheiro?
Ele diz, com sua habitual simplicidade:
— O que eu fiz, moço, era o que todo mundo devia fazer. Se cada um agisse assim, o Brasil seria melhor.
E encerra:
— Não tem coisa melhor na vida do que chegar em casa e dormir sem peso na consciência, sem ter prejudicado ninguém. É só isso que quero pra mim e pra minha família.
Não precisa perguntar mais nada.
Publicado no Correio Braziliense em 12/03/2004
The Lurker Says: "De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto." Ruy Barbosa.
março 12, 2004
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